Em 2003, o Tribunal Constitucional da Alemanha rejeitou recurso da princesa Caroline de Mônaco contra a imprensa alemã, que havia publicado fotos dela e de sua família em momentos privados. Para a corte alemã, o direito à intimidade de personagens públicos é diferente do de pessoas comuns. Inconformada, a princesa entrou com ação junto à Corte Européia de Diretos Humanos, que decidiu em sentido contrário: a invasão da intimidade da princesa foi indevida.
A decisão da Corte Européia, contudo, não derruba a tomada pelo tribunal alemão pois não há uma hierarquia entre os dois tribunais. A mesma discussão de cunho constitucional foi tratada de maneira diferente por cortes de ordens diversas. Como, então, resolver a questão?
Foi para enfrentar problemas dessa ordem, que a cada dia ganham maior evidência por conta da redução dos limites territoriais, que o professor Marcelo Neves instituiu o termo transconstitucionalismo, tema de sua mais recente tese. “É necessária a constante adequação recíproca e o diálogo, no lugar de tentar impor uma ordem sobre a outra”, afirmou, em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico.
O professor elencou em sua tese outros 97 casos onde há problemas semelhantes ao de Caroline de Mônaco para identificar o que chama de transconstitucionalismo. Como tudo o que fez até agora na área acadêmica, o transconstitucionalismo pegou e começa a ser bastante discutido. Livre docente pela Universidade de Friburg, na Suíça, Neves estudou a vida toda. Sua atividade na advocacia é bastante recente. Por isso mesmo, vive um momento de grande transformação.
Marcelo Neves acabou de sair de duas importantes batalhas. Uma acadêmica e outra política. Perdeu uma e ganhou outra. Para surpresa geral, perdeu a acadêmica e levou a política. Foi empossado no cargo de conselheiro do Conselho Nacional de Justiça na última quarta-feira (8/7), indicado pela vaga do Senado. Nesta arena, ganhou por 41 votos a 20 de seu adversário, o advogado potiguar Erick Pereira.
Pouco antes, contudo, perdeu a disputa no concurso para professor titular do Departamento de Direito de Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Apesar de sua tese sobre o transconstitucionalismo ter sido aplaudida de pé, quem levou o cargo, por cinco votos a zero, foi o professor Elival da Silva Ramos. Muitos compararam o que ocorreu na disputa entre Neves e Ramos com episódio ocorrido em 1961, no qual o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves, perdeu, quando merecia ganhar, o concurso para a cátedra de Direito Romano da Faculdade de Direito da USP. Outros acham que a comparação é desmedida.
Fato é que as duas batalhas já ajudaram a preparar o acadêmico Marcelo Neves a se transformar no conselheiro, que deverá ter muito mais jogo de cintura do que a academia exige para enfrentar o desafio de fazer o Judiciário andar e dar respostas justas em tempo hábil. Tarefa nada fácil.
Leia a entrevista
ConJur — O que é transconstitucionalismo?Marcelo Neves — Em poucas palavras, o transconstitucionalismo é o entrelaçamento de ordens jurídicas diversas, tanto estatais como transnacionais, internacionais e supranacionais, em torno dos mesmos problemas de natureza constitucional. Ou seja, problemas de direitos fundamentais e limitação de poder que são discutidos ao mesmo tempo por tribunais de ordens diversas. Por exemplo, o comércio de pneus usados, que envolve questões ambientais e de liberdade econômica. Essas questões são discutidas ao mesmo tempo pela Organização Mundial do Comércio, pelo Mercosul e pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil. O fato de a mesma questão de natureza constitucional ser enfrentada concomitantemente por diversas ordens leva ao que eu chamei de transconstitucionalismo.
ConJur — Certos princípios ou direitos fundamentais são comuns a todos os países e todas as sociedades. A discussão é: como garantir a aplicação desses princípios pelas mais diversas esferas de poder?Marcelo Neves — É um pouco diferente disso. O transconstitucionalismo significa que ordens constitucionais se deparam com problemas de ordens que não aderem aos critérios do constitucionalismo. Mas não é possível uma imposição unilateral. Tem que haver um diálogo constitucional. Essa é a idéia. Como é que nós, diferentes, com ordens diversas, pontos de partida diversos, podemos dialogar sobre questões constitucionais comuns que afetam ao mesmo tempo ambas as ordens. Esse é o ponto. Cito 98 casos na minha tese.
ConJur — O senhor pode dar um exemplo?Marcelo Neves — Por exemplo, o caso de Caroline de Mônaco contra a Alemanha. O Tribunal Constitucional Alemão afirmou que figuras proeminentes, diante da imprensa, não têm a mesma garantia de intimidade que o cidadão comum. A corte constitucional alemã decidiu que as fotos tiradas de Caroline de Mônaco por paparazzi, mesmo na esfera privada, não poderiam ser proibidas. Vetou apenas aquelas que atingiam os filhos dela, porque eram menores. O caso chegou ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, e o tribunal decidiu o contrário: não há liberdade de imprensa que atinja a intimidade da princesa, mesmo sendo ela uma figura pública. Neste caso, não há uma hierarquia entre os dois tribunais, mas o mesmo caso é tratado de maneira diversa. Como é que podemos, então, resolver essa questão se não houver uma pretensão de diálogo, de aprendizado recíproco? Ou seja, é preciso haver uma constante adequação recíproca e não a imposição de uma ordem sobre a outra.
ConJur — Pode citar outro exemplo?Marcelo Neves — Esse tipo de conflito é comum na área esportiva. Um ciclista espanhol, diante do Tribunal Arbitral do Esporte, em Lausanne, defendeu seu direito de entrar na Justiça espanhola contra a decisão que o condenou por dopping. O laboratório credenciado pelo direito esportivo, que é o laboratório da Universidade da Califórnia, acusou dopping. O ciclista defendeu-se apresentando teste negativo realizado em um laboratório na Espanha. O Tribunal Arbitral não se interessou pelo resultado do laboratório espanhol. Pelo princípio da igualdade do esporte, todos os desportistas devem subordinar-se à mesma instância. Caso contrário, cada um recorreria ao seu país e não haveria critérios comuns.
ConJur — Não adianta recorrer à Justiça nesse caso?Marcelo Neves — Não, porque a associação internacional pode simplesmente excluir a Federação Espanhola de Ciclismo das competições. O Estado, com toda a sua força, não teria condições de enfrentar essa situação. A decisão final, no caso, foi favorável ao ciclista por uma questão lateral, de direito de defesa. Ele não foi intimado corretamente.
ConJur — Os dois exemplos revelam que é preciso ter um diálogo entre as diversas ordens. A discussão, então, é de ponderação de princípios, que é outro tema que o senhor aborda em suas lições?Marcelo Neves — Qualquer direito que eu tenha já está limitado pelo direito do outro, de mesma natureza. Não é preciso outro princípio, como o da igualdade ou da dignidade humana, para contrapor ao princípio da liberdade. A liberdade do outro já limita a minha liberdade. Então, os princípios já são limitados por eles mesmos. Ou seja, não é preciso fazer ponderação entre dois princípios distintos. O limite do meu direito à liberdade é o seu direito à liberdade. E, nessa perspectiva, se houvesse uma ponderação, seria intra-princípio.
ConJur — Como o senhor vê a postura ativista da atual formação do Supremo Tribunal Federal?Marcelo Neves — Minha posição é um pouco ambivalente quanto a isso. Considero fundamental a concretização da Constituição. Sem dúvida, o Legislativo e o Executivo não estão atuando de maneira adequada nesse processo. O Judiciário, portanto, passou a assumir essa responsabilidade. Em princípio, não afirmo que o Judiciário não deve preocupar-se com essa concretização e lutar pela realização constitucional. O que me preocupa é a crença de que, com a fortificação do Judiciário, isso possa levar a transformações mais profundas se não houver respostas em outro plano nos outros poderes. A concretização constitucional depende de um trabalho conjunto de integração, de colaboração entre os três poderes. O que se está criando é a crença de que problemas constitucionais básicos apenas podem ser resolvidos a partir do Judiciário.
ConJur — O Judiciário está legislando?Marcelo Neves — Não diria legislar, mas há uma presença muito mais intensa no Judiciário em relação aos outros poderes. O Judiciário passou a ocupar vácuos nesse campo de falta de atuação do Executivo e do Legislativo. Isso é um sintoma de fragilidade da estrutura geral do Estado brasileiro.
ConJur — Isso ficou claro no julgamento do caso Raposa Serra do Sol. Na falta de regulamentação clara, o Supremo criou um código de demarcação de terras indígenas com 19 artigos. O que o senhor acha disso?Marcelo Neves — Eu acho problemático. Não vejo com empolgação, porque podemos perder os parâmetros para a limitação. Quanto mais condições dessa natureza se impõem, no caso de decisão, mais nós perdemos os contornos que distinguem a atuação dos poderes. Embora compreenda a situação com a qual se depara o Judiciário, vejo essa atuação com reservas.
ConJur — Como o senhor vê o trabalho feito até agora pelo Conselho Nacional de Justiça?Marcelo Neves — O planejamento estratégico é fenomenal. Em último estágio, o CNJ trabalha no plano da inclusão social ao trabalhar pela celeridade no Judiciário. Há projetos muito interessantes porque não se parte de algo abstrato, mas sim da concretude de situações que reclamam uma ação. Os mutirões em penitenciárias é um exemplo concreto de projeto que pode ajudar a reorientar condutas e criar novas expectativas para as pessoas.
ConJur — Qual é a sua expectativa em relação ao trabalho no Conselho?Marcelo Neves — Será minha primeira experiência em um órgão público dessa natureza, porque eu venho de uma tradição muito acadêmica. Sempre fiquei na posição cômoda de criticar as instituições, agora terei de ajudar a criar estratégias para fazê-las funcionar. Sempre fui um ferrenho crítico da nossa Constituição. Não no sentido do seu texto, mas da sua concretização. Eu fiz tese sobre a constitucionalização simbólica, que apontava exatamente para as deficiências da nossa vida constitucional. E agora vou assumir não uma postura acadêmica, que importa uma posição de certa distância, mas estarei envolvido na solução de problemas.
ConJur — Quais os principais pontos nos quais o CNJ deve trabalhar?Marcelo Neves — Um deles é na ampliação do acesso à Justiça. Para isso precisamos de transformações infra-estruturais e o plano estratégico do Conselho orienta-se nesse sentido. Também, considero fundamental a parte disciplinar. Há casos graves de atuações abusivas, ilegais e práticas de corrupção. É preciso ter uma atuação rigorosa em relação a essas questões. O combate à corrupção é fundamental para a inclusão social, para a realização do Estado de Direito. Os países que têm o maior grau de inclusão social são os países escandinavos. E é exatamente nestes países que o grau de corrupção é o mais baixo. Há uma relação já comprovada entre o baixo grau de inclusão social, ou a ampla exclusão social, com práticas de corrupção sistêmica.
ConJur — O senhor tem uma carreira eminentemente acadêmica, mas passa a compor um órgão político como é o CNJ. Desde a disputa para o cargo, o senhor já teve de começar a se adaptar ao jogo político. Como o senhor se sentiu?Marcelo Neves — Eu tive um apoio amplo de grandes nomes como o professor Joaquim Falcão e o ministro Tarso Genro, assim como o próprio ministro Gilmar Mendes, e os senadores Aloysio Mercadante e Eduardo Suplicy (PT), Marco Maciel (DEM), Sérgio Guerra e Tasso Jereissati (PSDB), por exemplo. Esse apoio amplo ajudou-me a ultrapassar muito bem essa fase. Tenho de confessar que eu próprio olhava com desconfiança o CNJ no seu surgimento. Poderia ter-se transformado em uma nova estrutura burocrática. Mas não. Hoje ele é um dos órgãos mais importantes da República.
ConJur — A desconfiança da maior parte das pessoas em relação ao CNJ, de fato, acabou. Mas há tribunais que insistem em desrespeitar as ordens do Conselho. Como o senhor vê isso?Marcelo Neves — De fato, há reações de alguns tribunais. Mas acho que ainda estamos naquela fase de transição em que é difícil aceitar um novo órgão cuja função é, também, de controlar, fiscalizar. Estou convicto de que essa situação acomodar-se-á com mais algum tempo.
ConJur — Com que tipo de assuntos o senhor pretende se deparar no CNJ?Marcelo Neves — No plano estratégico, pretendo vincular-me às comissões relacionadas com acesso à Justiça e com a questão da execução judicial. Isto não quer dizer que eu não possa ser alocado em outra comissão, mas, pelas minhas experiências anteriores e minha formação acadêmica, esses são os temas com os quais tenho condições de contribuir melhor.
ConJur — O senhor citou o acesso à Justiça. Entrar na Justiça hoje é simples, o difícil é receber uma resposta dela, não é?Marcelo Neves — Houve melhora no acesso, mas há muito que se fazer. A criação dos Juizados Especiais ajudou a ampliar o acesso. Houve um conjunto de novas estruturas institucionais, que depois de 1988 permitiram uma abertura e um maior acesso à Justiça. Mas ainda é precário. O acesso à Justiça não se limita ao direito de ajuizar um processo. Há problemas que vão além da questão jurídica, como os de exclusão social. A falta de acesso à educação e à saúde, no Brasil, também significa falta de acesso à Justiça.
ConJur — Mas o que pode ser feito para que o Judiciário possa responder em tempo hábil às demandas que são ajuizadas? Marcelo Neves — A resposta ainda é falha, mas o quadro vem melhorando progressivamente. Recentemente, foi divulgado que o número de processos decididos se igualou ao número de processos que entraram no mesmo período. Isso é um ponto muito positivo. O importante é que se mantenha esse ritmo, porque a situação só poderá ser consolidada com um tempo maior. O Conselho está no caminho correto.
ConJur — O senhor entra para o Conselho com a marca de que é um “homem do ministro Gilmar”. Como o senhor reage a isso?Marcelo Neves — Com tranquilidade. O tempo e o trabalho que pretendo fazer mostrarão que ajo com independência. Admiro o trabalho do ministro Gilmar Mendes. Sou professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, mas tenho minhas divergências com ele. E o ministro sempre soube respeitá-las muito bem.
A decisão da Corte Européia, contudo, não derruba a tomada pelo tribunal alemão pois não há uma hierarquia entre os dois tribunais. A mesma discussão de cunho constitucional foi tratada de maneira diferente por cortes de ordens diversas. Como, então, resolver a questão?
Foi para enfrentar problemas dessa ordem, que a cada dia ganham maior evidência por conta da redução dos limites territoriais, que o professor Marcelo Neves instituiu o termo transconstitucionalismo, tema de sua mais recente tese. “É necessária a constante adequação recíproca e o diálogo, no lugar de tentar impor uma ordem sobre a outra”, afirmou, em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico.
O professor elencou em sua tese outros 97 casos onde há problemas semelhantes ao de Caroline de Mônaco para identificar o que chama de transconstitucionalismo. Como tudo o que fez até agora na área acadêmica, o transconstitucionalismo pegou e começa a ser bastante discutido. Livre docente pela Universidade de Friburg, na Suíça, Neves estudou a vida toda. Sua atividade na advocacia é bastante recente. Por isso mesmo, vive um momento de grande transformação.
Marcelo Neves acabou de sair de duas importantes batalhas. Uma acadêmica e outra política. Perdeu uma e ganhou outra. Para surpresa geral, perdeu a acadêmica e levou a política. Foi empossado no cargo de conselheiro do Conselho Nacional de Justiça na última quarta-feira (8/7), indicado pela vaga do Senado. Nesta arena, ganhou por 41 votos a 20 de seu adversário, o advogado potiguar Erick Pereira.
Pouco antes, contudo, perdeu a disputa no concurso para professor titular do Departamento de Direito de Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Apesar de sua tese sobre o transconstitucionalismo ter sido aplaudida de pé, quem levou o cargo, por cinco votos a zero, foi o professor Elival da Silva Ramos. Muitos compararam o que ocorreu na disputa entre Neves e Ramos com episódio ocorrido em 1961, no qual o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves, perdeu, quando merecia ganhar, o concurso para a cátedra de Direito Romano da Faculdade de Direito da USP. Outros acham que a comparação é desmedida.
Fato é que as duas batalhas já ajudaram a preparar o acadêmico Marcelo Neves a se transformar no conselheiro, que deverá ter muito mais jogo de cintura do que a academia exige para enfrentar o desafio de fazer o Judiciário andar e dar respostas justas em tempo hábil. Tarefa nada fácil.
Leia a entrevista
ConJur — O que é transconstitucionalismo?Marcelo Neves — Em poucas palavras, o transconstitucionalismo é o entrelaçamento de ordens jurídicas diversas, tanto estatais como transnacionais, internacionais e supranacionais, em torno dos mesmos problemas de natureza constitucional. Ou seja, problemas de direitos fundamentais e limitação de poder que são discutidos ao mesmo tempo por tribunais de ordens diversas. Por exemplo, o comércio de pneus usados, que envolve questões ambientais e de liberdade econômica. Essas questões são discutidas ao mesmo tempo pela Organização Mundial do Comércio, pelo Mercosul e pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil. O fato de a mesma questão de natureza constitucional ser enfrentada concomitantemente por diversas ordens leva ao que eu chamei de transconstitucionalismo.
ConJur — Certos princípios ou direitos fundamentais são comuns a todos os países e todas as sociedades. A discussão é: como garantir a aplicação desses princípios pelas mais diversas esferas de poder?Marcelo Neves — É um pouco diferente disso. O transconstitucionalismo significa que ordens constitucionais se deparam com problemas de ordens que não aderem aos critérios do constitucionalismo. Mas não é possível uma imposição unilateral. Tem que haver um diálogo constitucional. Essa é a idéia. Como é que nós, diferentes, com ordens diversas, pontos de partida diversos, podemos dialogar sobre questões constitucionais comuns que afetam ao mesmo tempo ambas as ordens. Esse é o ponto. Cito 98 casos na minha tese.
ConJur — O senhor pode dar um exemplo?Marcelo Neves — Por exemplo, o caso de Caroline de Mônaco contra a Alemanha. O Tribunal Constitucional Alemão afirmou que figuras proeminentes, diante da imprensa, não têm a mesma garantia de intimidade que o cidadão comum. A corte constitucional alemã decidiu que as fotos tiradas de Caroline de Mônaco por paparazzi, mesmo na esfera privada, não poderiam ser proibidas. Vetou apenas aquelas que atingiam os filhos dela, porque eram menores. O caso chegou ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, e o tribunal decidiu o contrário: não há liberdade de imprensa que atinja a intimidade da princesa, mesmo sendo ela uma figura pública. Neste caso, não há uma hierarquia entre os dois tribunais, mas o mesmo caso é tratado de maneira diversa. Como é que podemos, então, resolver essa questão se não houver uma pretensão de diálogo, de aprendizado recíproco? Ou seja, é preciso haver uma constante adequação recíproca e não a imposição de uma ordem sobre a outra.
ConJur — Pode citar outro exemplo?Marcelo Neves — Esse tipo de conflito é comum na área esportiva. Um ciclista espanhol, diante do Tribunal Arbitral do Esporte, em Lausanne, defendeu seu direito de entrar na Justiça espanhola contra a decisão que o condenou por dopping. O laboratório credenciado pelo direito esportivo, que é o laboratório da Universidade da Califórnia, acusou dopping. O ciclista defendeu-se apresentando teste negativo realizado em um laboratório na Espanha. O Tribunal Arbitral não se interessou pelo resultado do laboratório espanhol. Pelo princípio da igualdade do esporte, todos os desportistas devem subordinar-se à mesma instância. Caso contrário, cada um recorreria ao seu país e não haveria critérios comuns.
ConJur — Não adianta recorrer à Justiça nesse caso?Marcelo Neves — Não, porque a associação internacional pode simplesmente excluir a Federação Espanhola de Ciclismo das competições. O Estado, com toda a sua força, não teria condições de enfrentar essa situação. A decisão final, no caso, foi favorável ao ciclista por uma questão lateral, de direito de defesa. Ele não foi intimado corretamente.
ConJur — Os dois exemplos revelam que é preciso ter um diálogo entre as diversas ordens. A discussão, então, é de ponderação de princípios, que é outro tema que o senhor aborda em suas lições?Marcelo Neves — Qualquer direito que eu tenha já está limitado pelo direito do outro, de mesma natureza. Não é preciso outro princípio, como o da igualdade ou da dignidade humana, para contrapor ao princípio da liberdade. A liberdade do outro já limita a minha liberdade. Então, os princípios já são limitados por eles mesmos. Ou seja, não é preciso fazer ponderação entre dois princípios distintos. O limite do meu direito à liberdade é o seu direito à liberdade. E, nessa perspectiva, se houvesse uma ponderação, seria intra-princípio.
ConJur — Como o senhor vê a postura ativista da atual formação do Supremo Tribunal Federal?Marcelo Neves — Minha posição é um pouco ambivalente quanto a isso. Considero fundamental a concretização da Constituição. Sem dúvida, o Legislativo e o Executivo não estão atuando de maneira adequada nesse processo. O Judiciário, portanto, passou a assumir essa responsabilidade. Em princípio, não afirmo que o Judiciário não deve preocupar-se com essa concretização e lutar pela realização constitucional. O que me preocupa é a crença de que, com a fortificação do Judiciário, isso possa levar a transformações mais profundas se não houver respostas em outro plano nos outros poderes. A concretização constitucional depende de um trabalho conjunto de integração, de colaboração entre os três poderes. O que se está criando é a crença de que problemas constitucionais básicos apenas podem ser resolvidos a partir do Judiciário.
ConJur — O Judiciário está legislando?Marcelo Neves — Não diria legislar, mas há uma presença muito mais intensa no Judiciário em relação aos outros poderes. O Judiciário passou a ocupar vácuos nesse campo de falta de atuação do Executivo e do Legislativo. Isso é um sintoma de fragilidade da estrutura geral do Estado brasileiro.
ConJur — Isso ficou claro no julgamento do caso Raposa Serra do Sol. Na falta de regulamentação clara, o Supremo criou um código de demarcação de terras indígenas com 19 artigos. O que o senhor acha disso?Marcelo Neves — Eu acho problemático. Não vejo com empolgação, porque podemos perder os parâmetros para a limitação. Quanto mais condições dessa natureza se impõem, no caso de decisão, mais nós perdemos os contornos que distinguem a atuação dos poderes. Embora compreenda a situação com a qual se depara o Judiciário, vejo essa atuação com reservas.
ConJur — Como o senhor vê o trabalho feito até agora pelo Conselho Nacional de Justiça?Marcelo Neves — O planejamento estratégico é fenomenal. Em último estágio, o CNJ trabalha no plano da inclusão social ao trabalhar pela celeridade no Judiciário. Há projetos muito interessantes porque não se parte de algo abstrato, mas sim da concretude de situações que reclamam uma ação. Os mutirões em penitenciárias é um exemplo concreto de projeto que pode ajudar a reorientar condutas e criar novas expectativas para as pessoas.
ConJur — Qual é a sua expectativa em relação ao trabalho no Conselho?Marcelo Neves — Será minha primeira experiência em um órgão público dessa natureza, porque eu venho de uma tradição muito acadêmica. Sempre fiquei na posição cômoda de criticar as instituições, agora terei de ajudar a criar estratégias para fazê-las funcionar. Sempre fui um ferrenho crítico da nossa Constituição. Não no sentido do seu texto, mas da sua concretização. Eu fiz tese sobre a constitucionalização simbólica, que apontava exatamente para as deficiências da nossa vida constitucional. E agora vou assumir não uma postura acadêmica, que importa uma posição de certa distância, mas estarei envolvido na solução de problemas.
ConJur — Quais os principais pontos nos quais o CNJ deve trabalhar?Marcelo Neves — Um deles é na ampliação do acesso à Justiça. Para isso precisamos de transformações infra-estruturais e o plano estratégico do Conselho orienta-se nesse sentido. Também, considero fundamental a parte disciplinar. Há casos graves de atuações abusivas, ilegais e práticas de corrupção. É preciso ter uma atuação rigorosa em relação a essas questões. O combate à corrupção é fundamental para a inclusão social, para a realização do Estado de Direito. Os países que têm o maior grau de inclusão social são os países escandinavos. E é exatamente nestes países que o grau de corrupção é o mais baixo. Há uma relação já comprovada entre o baixo grau de inclusão social, ou a ampla exclusão social, com práticas de corrupção sistêmica.
ConJur — O senhor tem uma carreira eminentemente acadêmica, mas passa a compor um órgão político como é o CNJ. Desde a disputa para o cargo, o senhor já teve de começar a se adaptar ao jogo político. Como o senhor se sentiu?Marcelo Neves — Eu tive um apoio amplo de grandes nomes como o professor Joaquim Falcão e o ministro Tarso Genro, assim como o próprio ministro Gilmar Mendes, e os senadores Aloysio Mercadante e Eduardo Suplicy (PT), Marco Maciel (DEM), Sérgio Guerra e Tasso Jereissati (PSDB), por exemplo. Esse apoio amplo ajudou-me a ultrapassar muito bem essa fase. Tenho de confessar que eu próprio olhava com desconfiança o CNJ no seu surgimento. Poderia ter-se transformado em uma nova estrutura burocrática. Mas não. Hoje ele é um dos órgãos mais importantes da República.
ConJur — A desconfiança da maior parte das pessoas em relação ao CNJ, de fato, acabou. Mas há tribunais que insistem em desrespeitar as ordens do Conselho. Como o senhor vê isso?Marcelo Neves — De fato, há reações de alguns tribunais. Mas acho que ainda estamos naquela fase de transição em que é difícil aceitar um novo órgão cuja função é, também, de controlar, fiscalizar. Estou convicto de que essa situação acomodar-se-á com mais algum tempo.
ConJur — Com que tipo de assuntos o senhor pretende se deparar no CNJ?Marcelo Neves — No plano estratégico, pretendo vincular-me às comissões relacionadas com acesso à Justiça e com a questão da execução judicial. Isto não quer dizer que eu não possa ser alocado em outra comissão, mas, pelas minhas experiências anteriores e minha formação acadêmica, esses são os temas com os quais tenho condições de contribuir melhor.
ConJur — O senhor citou o acesso à Justiça. Entrar na Justiça hoje é simples, o difícil é receber uma resposta dela, não é?Marcelo Neves — Houve melhora no acesso, mas há muito que se fazer. A criação dos Juizados Especiais ajudou a ampliar o acesso. Houve um conjunto de novas estruturas institucionais, que depois de 1988 permitiram uma abertura e um maior acesso à Justiça. Mas ainda é precário. O acesso à Justiça não se limita ao direito de ajuizar um processo. Há problemas que vão além da questão jurídica, como os de exclusão social. A falta de acesso à educação e à saúde, no Brasil, também significa falta de acesso à Justiça.
ConJur — Mas o que pode ser feito para que o Judiciário possa responder em tempo hábil às demandas que são ajuizadas? Marcelo Neves — A resposta ainda é falha, mas o quadro vem melhorando progressivamente. Recentemente, foi divulgado que o número de processos decididos se igualou ao número de processos que entraram no mesmo período. Isso é um ponto muito positivo. O importante é que se mantenha esse ritmo, porque a situação só poderá ser consolidada com um tempo maior. O Conselho está no caminho correto.
ConJur — O senhor entra para o Conselho com a marca de que é um “homem do ministro Gilmar”. Como o senhor reage a isso?Marcelo Neves — Com tranquilidade. O tempo e o trabalho que pretendo fazer mostrarão que ajo com independência. Admiro o trabalho do ministro Gilmar Mendes. Sou professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, mas tenho minhas divergências com ele. E o ministro sempre soube respeitá-las muito bem.
Entrevista muito boa!!!
Ajudou-me bastante numa breve pesquisa sobre transconstitucionalismo.